Uma leitura fantástica de Bárbara
Era uma vez...

Ao longo dos anos, inúmeros estudos
foram feitos na tentativa de que se chegasse a uma conceituação do que se
denomina “narrativa fantástica”. Certamente, os estudos de maior significância
sejam os de Tzvetan Todorov a respeito do assunto. Para ele, o fantástico
decorre da incerteza de que o leitor, dentro de um mundo, que conhece,
encontra-se diante de um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis
desse mundo que lhe é familiar.
O fantástico define-se, pois, a partir
do que se compreende por real e imaginário. A possibilidade de se hesitar entre
o natural e o sobrenatural, causando assim um fenômeno estranho, criou o efeito
fantástico.
Dentre os conceitos de fantástico
apresentados por Todorov (p. 32), os mais relevantes, por terem uma aproximação
maior com o texto de Murilo Rubião a ser estudado, são os dos franceses Louis
Vax, em L’Art et la
Littérature fantastique: A narrativa fantástica ... gosta de nos apresentar, habitando o mundo
real em que nos achamos, homens como nós, colocados subitamente em presença inexplicável[1]
Roger Caillois, em Au Couer du
fantastique, conceitua: Todo
fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do inadmissível no seio da
inalterável legalidade cotidiana.[2]
Por fim, Yves
Stalloni[3]
reflete acerca desse gênero, ao observar que op conto fantástico já foi
aproximado do conto maravilhoso. Para ele, a crítica moderna já mostrou as
diferenças existentes entre ambos. Acrescenta, ainda que o fantástico é reconhecido
pela utilização do medo como impulso essencial da narração, pela irrupção inexplicável
do sobrenatural, o que determina o motivo da hesitação do personagem, do leitor
igualmente e por um fim dramático.
Tais observações
em torno do fantástico servem como ponto de partida para que se faça uma
leitura analítica do texto de Murilo Rubião, porém, o conto sobre o qual recai
este estudo não se enquadra muito bem em tais modelos teóricos, posto que, em
Murilo, essas características do conto fantástico são extrapoladas.
Primeiramente, em Bárbara,
Murilo Rubião utiliza o fantástico com a finalidade de crítica ao sentido vazio
da vida e do texto, reforça a impotência subjacente a toda busca de
conhecimento, num mundo condenado ao malogro do saber e do conhecimento[4].
Segundo os autores, em Bárbara tal situação atinge seu ponto máximo,
pois o personagem central do conto é uma mulher devoradora do mundo em redor:
“pedia e engordava”. Ela substitui o desejo sexual pelo prazer deslocado do
desejo em uma série ininterrupta de desejos/substituições.
Álvaro Lins, em
artigo publicado em março de 1948, diz:
O leitor fica, então, perfeitamente frio e
indiferente diante de contos como “O Ex-Mágico”, “O Pirotécnico Zacarias” ou
“Bárbara” da série intitulada “Mulheres”. Os dois primeiros: engenhosos,
curiosos, contudo sem intensidade psicológica,
enquanto o último é apenas pitoresco; e, de um pitoresco de mau gosto.[5]
Para quem o
caráter pitoresco constitui o perigo do tipo de ficção adotado por Murilo
Rubião, pois o leitor pode restringir-se apenas à alucinação poética, à mágica
por ele descoberta, não sendo completa a percepção do texto.
Estrategicamente,
Murilo Rubião lança mão do fantástico para criticar, conforme dito acima, o
sentido vazio da vida e do texto. Por outro lado, pode-se perceber que em Bárbara
a crítica recai, primordialmente, sobre um drama da existência humana: a
vaidade, representada aqui na figura feminina de Bárbara cujo desejo de sempre
querer (por querer) leva-a à obesidade exagerada. Uma situação de não-liberdade
e prisão por parte do marido.
A epígrafe do
texto fora extraída do livro “Provérbios” da Bíblia, considerado o mais típico
livro da literatura sapiencial de Israel; onde se encontram as normas (orientações)
para o homem conceber um paradigma de vida.
A epígrafe é o
décimo sexto verso do capítulo vinte e um, da segunda parte de “A Grande
Coleção Salomônica”, na qual o autor apresenta uma série de provérbios sem
nenhuma ordem aparente. O curioso é que, a terceira parte do mesmo livro
intitula-se “A perfeita dona-de-casa”, trata-se de um poema alfabético que,
tomando-se a primeira letra de cada verso, tem-se o alfabeto hebraico. Nesse
poema, o autor apresenta de forma erudita, o modelo de como deve ser a
mulher/esposa talentosa, o que constitui um paradoxo com a personagem do conto
em questão, a qual representa a imagem do lado obscuro da mulher: gananciosa,
egoísta, devoradora, dominadora, mãe e esposa má, que tudo vê, tudo deseja e
tudo devora. Bárbara quer apenas pelo fato de querer. Isso a leva a uma
obesidade exagerada, transformando-se na prisão do marido, arrastando-o para a
prisão dela mesma: sua vaidade. Evidentemente, essa obesidade exagerada da
personagem representa a metáfora da crítica que ora se apresenta pelo autor do
conto. A devoração de si própria. Bárbara devora, mas o seu devorar volta-se
para si mesma e ela consume-se em sua própria infelicidade e desejos.
A vaidade em Bárbara
acontece a partir de sua atitude individualista e egocêntrica – só pensa e se
interessa por si própria, ou melhor, pela satisfação incomensurável de seus
desejos, embora sejam absurdos e injustificáveis.
Bárbara gostava de pedir. Pedira e engordava.
Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre
disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação,
dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os
retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo,
se avolumando à medida que se ampliava sua ambição.[6]
Nesse trecho, além
de evidente o fato de o marido sentir-se preso às vontades e pedidos da mulher,
é perceptível, ainda, uma característica inerente ao texto de Murilo Rubião: a
incongruência entre causa e efeito: “Pedia e engordava” (p. 29.) ou “o crescimento
de seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição” (p. 29.).
Outro recurso
empregado no texto á a reiteração, pois sempre que se lhe satisfazia um pedido,
Bárbara interessava-se por outra coisa, pedia mais uma vez e o marido
satisfazia-lhe a todos os seus pedidos. Além da reiteração e da incongruência
entre causa e efeito, existem vários momentos em que se evidencia a hipérbole:
“Às vezes relutava em aquiescer às suas exigências, vendo-a engordar
incessantemente.” (p. 30.). “Definhava-lhe o corpo, enquanto lhe crescia
assustadoramente o ventre.” (p. 30.).
Mas o crescimento
descomunal da barriga de Bárbara era o prenúncio de um filho e após em período
sem pedir nada – o que levou seu marido à angústia – ela lhe pede um oceano. E
continua a engordar e a pedir.
Momentaneamente despreocupei-me da exagerada gordura
de Bárbara. As minhas apreensões voltam-se agora para o seu ventre a dilatar-se
de forma assustadora. A tal extremo se dilatou que, apesar da compacta massa de
banha que lhe cobria o corpo, ela ficava escondida por trás de colossal
barriga. Receoso de que dali saísse um gigante, imaginava como seria terrível
viver ao lado de uma mulher gordíssima e um filho monstruoso, que poderia ainda
herdar da mãe a obsessão de pedir coisas.
Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e
feio, pesando um quilo.[7]
Aqui tanto há a
hipérbole (“colossal barriga” / “nasceu um ser raquítico e feio, pesando um
quilo”), como há, também, efeito não proporcional à causa: nascer um ser
raquítico quando a barriga da mãe era colossal.
Bárbara repele o
filho após seu nascimento, apenas pelo fato de não o ter encomendado: o que
constitui um paradoxo: uma mãe indiferente e insensível ao pranto e à fome do
filho, negando-se lhe entregar os volumosos seios cheios de leite.
Segue-se a
narrativa e Bárbara segue pedindo sempre, cada vez mais seus pedidos ganham
proporções maiores. Um dia pediu um baobá. É com a satisfação deste pedido que
ela deixa transparecer, embora muito à miúde, alguma demonstração de carinho
pelo marido.
Feliz e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara
passava as horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também desenhava
figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo de um coração, o que muito me
comoveu. Este foi, no entanto, o único gesto de carinho que dela recebi. Alheia
à gratidão com que eu recebera a sua lembrança, assistiu ao murchar das folhas
e, ao ver seco o baobá, desinteressou-se dele.[8]
Outras hipérboles
são encontradas no texto, tais como o fato de passar-se anos do nascimento do
menino e este continuar do mesmo tamanho. Esse fato, além de hiperbólico, é,
ainda, outro exemplo da ruptura do princípio de causalidade: causa que não
produz efeito. E Bárbara sempre a engordar.
Seus pedidos
continuam: pede um navio e por fim, pede uma minúscula estrela.
Dessa forma,
Murilo Rubião cria um texto cuja atmosfera é de representação e de crítica à
mulher decaída, sobre o que escreveu Nelly Novaes Coelho:
Descendente de Eva, que induzindo o homem à
desobediência, provoca a ira divina e a conseqüente condenação: perda do
paraíso (= impedimento ao verdadeiro Conhecimento da vida); condenação a viver
na terra, à custa de um duro trabalho, acompanhado de sofrimentos sem conta; e
proibição do sexo, fora de sua finalidade básica: a procriação.[9]
A figura da mulher
povoa o universo muriliano, exercendo uma influência nefasta sobre o homem. Ela
nunca aparece como um ser amoroso e redentor, prevalece-lhe a face negativa.
Bárbara é, assim, a representação da culpa herdada pelo homem do Antigo
Testamento. O diálogo estabelecido entre o universo muriliano e o universo
bíblico, dá-se através da consciência crítica do processo de desumanização a
que o sistema progressista/competitivo condena o homem, e a consciência de uma
condenação méis antiga, presente no Antigo Testamento, cuja voz profética
determinou pára sempre o destino dos homens à expiação da Culpa.
Percebe-se, assim,
que o homem do universo de Murilo Rubião está condenado a essa expiação de uma
herança culposa advinda dos ancestrais da humanidade, desde Adão e Eva. A
consciência culposa pode ser evidenciada em outros textos do mesmo autor como
“A fila”, “Os comensais”, “Elisa”, “Aglaia”, dentre outros, nos quais os personagens,
embora vivenciam experiências alógicas, deixam transparecer uma consciência
culposa mediante os fatos por eles vividos, pois não há nada nem ninguém que apareça
para salvá-los da fatalidade que os arrasta; tal qual o homem-da-culpa do
Antigo Testamento não foi capaz de escapar da ira de Jeová, que o condenou ao
desterro terrestre.
No perfil do homem-da-culpa que arraigam os três
vetores que fundamentam a problemática muriliana: o interdito ao verdadeiro Conhecimento
da vida; o interdito à fluição livre do sexo e o interdito ao trabalho como
fonte de realização existencial. A desobediência a esses interditos foi,
evidentemente, causa da Culpa original e da Queda.[10]
Todo o universo da
obra de Murilo Rubião é permeado pela lembrança da maldição da Queda, o que
explica as infindáveis barreiras que sempre se interpõem entre homens e
mulheres que o povoam. Nos textos de Murilo Rubião não existe amor conforme os
moldes românticos, ou os modelos da tradição literária, o que existe é a trágica
carência-de-amor. Não apenas o amor conjugal ou carnal, mas amor pela vida ,
por si próprio, pelo próximo. Em Bárbara, o marido deseja sempre um
afeto, uma demonstração de carinho por parte de sua esposa, e, por essa razão,
se dispõe sempre a lhe satisfazer os desejos – mesmo que esses desejos
pareçam-lhes inexplicáveis ou dificultosos. Faz tudo para que ela perceba o
quanto ele a ama, porém, Bárbara só se interessa por seus desejos e pedidos.
Indiferente ao marido, ao filho, ao mundo, à própria vida. Nessa busca
incessante por suas próprias satisfações, Bárbara desconhece os valores que,
tradicionalmente, são inerentes a qualquer ser humano, tornando-se, dessa maneira,
entrave para a liberdade e felicidade do marido.
Apesar de
esquecido pela crítica e pelo público por vinte e sete anos, e, com base na
leitura ora feita do conto Bárbara, não há como negar que os contos de
Murilo Rubião inauguram o gênero fantástico na literatura brasileira. Para
Andemaro Taranto Goulart
... o fantástico muriliano questiona o problema da
loucura, do real e da razão; denuncia a angústia do homem alienado pelas forças
dominantes; dramatiza a questão do desejo e sua interdição, além de propiciar,
a autocontemplação da criação meta-poética, em voltar-se da obra sobre si mesma,
na expectativa de que ela se descubra enquanto projeto criador.[11]
Essa angústia e
dramatização observada por Audemaro Taranto Goulart na obra do escritor
mineiro, torna-se melhor percebida se o leitor não deixar de lado a leitura
epigráfica proposta por Goulart, posto que todos os contos de Murilo Rubião
contêm epígrafes retiradas todas elas do Antigo Testamento. Somente depois de
feita a leitura epigráfica, o leitor compreenderá a relação dialética entre as
epígrafes e os contos. Pois nem sempre as epígrafes mantêm uma relação direta,
no campo da significação, com os conteúdos abordados nos contos. À primeira
vista parecerá, ao leitor desatento, que entre conto e epígrafe não existe
nenhuma coerência. Mas é justamente aí que consiste a grandeza deste procedimento
muriliano: leva o leitor a pesquisar, a dialogar com outros textos, que criação
literária não se faz apenas com idéias, mas com palavras, com o diálogo entre
textos. Realizada essa compreensão, o leitor de Murilo Rubião experimentará a
sensação de purificação à qual Aristóteles se referiu em sua “Poética”: a
catarse. Nas palavras, ainda, de Audemaro:
E esse sentimento de catarse, que
toma conta do leitor, é um dos aspectos que faz da obra de Murilo Rubião um dos
momentos iluminados do modernismo brasileiro.”[12]
Certamente, ao
leitor que se dispuser a debruçar-se em leitura do texto muriliano, fica então
um breve itinerário a ser traçado para que o texto desse escritor mineiro seja
verdadeiramente valorizado e fruído como deve sê-lo. Dialogando com outros textos.
Percebendo que se trata de uma experimentação bem sucedida e descoberta de uma
nova maneira de representação do fantástico. E, que, através desse
procedimento, ora fantasioso, ora atraente por ser brutal, ora monstruoso, ora
repugnante, tem-se diante de si um texto exemplar.
[1] Louis
Vax, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 32.
[2] Roger
Caillois, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 32.
[3]
STALLONI, Yves. P. 124.
[4] ANDRADE,
Vera Lúcia et alli. P. 1.
[5] LINS,
Álvaro.
[6] RUBIÃO,
Murilo. P. 29.
[7] Idem. P.
31.
[8] Idem. P.
31-32.
[9] COELHO,
Nelly Novaes. P. 3.
[10] Idem.
P. 3.
[11]
GOULART, Audemaro taranto. P. 11.
[12] Idem.
P. 12.
Murilo Rubião - Amigo, sábio conselheiro , padrinho querido . Genial!
ResponderExcluirUm gênio da literatura! Amei!
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