Uma leitura fantástica de "Bárbara", de Murilo Rubião


Uma leitura fantástica de Bárbara


Era uma vez...
Assim começam, tradicionalmente, as narrativas em que a importância maior é transportar o leitor a uma realidade que, muitas vezes, não corresponde ao cotidiano das pessoas. O leitor sente-se atraído não apenas por um enredo empolgante, em que se encontre representado por algum herói ou heroína fabulosos. Ou, ainda, por perceber-se parte integrante de um diálogo entre ele e o autor de um texto ficcional. Por vezes, o leitor sente-se atraído por uma narrativa cujo gênero remete-o a um outro plano no âmbito daquilo que, literariamente, denomina-se romanesco: trata-se, pois, da narrativa fantástica. Gênero literário que remota sua origem ao século XVIII, com a novela gótica inglesa: Lê Diable amouveux, de Jacques Cazotte, publicado em 1772.
Ao longo dos anos, inúmeros estudos foram feitos na tentativa de que se chegasse a uma conceituação do que se denomina “narrativa fantástica”. Certamente, os estudos de maior significância sejam os de Tzvetan Todorov a respeito do assunto. Para ele, o fantástico decorre da incerteza de que o leitor, dentro de um mundo, que conhece, encontra-se diante de um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis desse mundo que lhe é familiar.
O fantástico define-se, pois, a partir do que se compreende por real e imaginário. A possibilidade de se hesitar entre o natural e o sobrenatural, causando assim um fenômeno estranho, criou o efeito fantástico.
Dentre os conceitos de fantástico apresentados por Todorov (p. 32), os mais relevantes, por terem uma aproximação maior com o texto de Murilo Rubião a ser estudado, são os dos franceses Louis Vax, em L’Art et la Littérature fantastique: A narrativa fantástica  ...  gosta de nos apresentar, habitando o mundo real em que nos achamos, homens como nós, colocados subitamente em presença inexplicável[1]
Roger Caillois, em Au Couer du fantastique, conceitua: Todo fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana.[2]
Por fim, Yves Stalloni[3] reflete acerca desse gênero, ao observar que op conto fantástico já foi aproximado do conto maravilhoso. Para ele, a crítica moderna já mostrou as diferenças existentes entre ambos. Acrescenta, ainda que o fantástico é reconhecido pela utilização do medo como impulso essencial da narração, pela irrupção inexplicável do sobrenatural, o que determina o motivo da hesitação do personagem, do leitor igualmente e por um fim dramático.
Tais observações em torno do fantástico servem como ponto de partida para que se faça uma leitura analítica do texto de Murilo Rubião, porém, o conto sobre o qual recai este estudo não se enquadra muito bem em tais modelos teóricos, posto que, em Murilo, essas características do conto fantástico são extrapoladas.
Primeiramente, em Bárbara, Murilo Rubião utiliza o fantástico com a finalidade de crítica ao sentido vazio da vida e do texto, reforça a impotência subjacente a toda busca de conhecimento, num mundo condenado ao malogro do saber e do conhecimento[4]. Segundo os autores, em Bárbara tal situação atinge seu ponto máximo, pois o personagem central do conto é uma mulher devoradora do mundo em redor: “pedia e engordava”. Ela substitui o desejo sexual pelo prazer deslocado do desejo em uma série ininterrupta de desejos/substituições.
Álvaro Lins, em artigo publicado em março de 1948, diz:

O leitor fica, então, perfeitamente frio e indiferente diante de contos como “O Ex-Mágico”, “O Pirotécnico Zacarias” ou “Bárbara” da série intitulada “Mulheres”. Os dois primeiros: engenhosos, curiosos, contudo sem intensidade psicológica, enquanto o último é apenas pitoresco; e, de um pitoresco de mau gosto.[5]

Para quem o caráter pitoresco constitui o perigo do tipo de ficção adotado por Murilo Rubião, pois o leitor pode restringir-se apenas à alucinação poética, à mágica por ele descoberta, não sendo completa a percepção do texto.
Estrategicamente, Murilo Rubião lança mão do fantástico para criticar, conforme dito acima, o sentido vazio da vida e do texto. Por outro lado, pode-se perceber que em Bárbara a crítica recai, primordialmente, sobre um drama da existência humana: a vaidade, representada aqui na figura feminina de Bárbara cujo desejo de sempre querer (por querer) leva-a à obesidade exagerada. Uma situação de não-liberdade e prisão por parte do marido.
A epígrafe do texto fora extraída do livro “Provérbios” da Bíblia, considerado o mais típico livro da literatura sapiencial de Israel; onde se encontram as normas (orientações) para o homem conceber um paradigma de vida.
A epígrafe é o décimo sexto verso do capítulo vinte e um, da segunda parte de “A Grande Coleção Salomônica”, na qual o autor apresenta uma série de provérbios sem nenhuma ordem aparente. O curioso é que, a terceira parte do mesmo livro intitula-se “A perfeita dona-de-casa”, trata-se de um poema alfabético que, tomando-se a primeira letra de cada verso, tem-se o alfabeto hebraico. Nesse poema, o autor apresenta de forma erudita, o modelo de como deve ser a mulher/esposa talentosa, o que constitui um paradoxo com a personagem do conto em questão, a qual representa a imagem do lado obscuro da mulher: gananciosa, egoísta, devoradora, dominadora, mãe e esposa má, que tudo vê, tudo deseja e tudo devora. Bárbara quer apenas pelo fato de querer. Isso a leva a uma obesidade exagerada, transformando-se na prisão do marido, arrastando-o para a prisão dela mesma: sua vaidade. Evidentemente, essa obesidade exagerada da personagem representa a metáfora da crítica que ora se apresenta pelo autor do conto. A devoração de si própria. Bárbara devora, mas o seu devorar volta-se para si mesma e ela consume-se em sua própria infelicidade e desejos.
A vaidade em Bárbara acontece a partir de sua atitude individualista e egocêntrica – só pensa e se interessa por si própria, ou melhor, pela satisfação incomensurável de seus desejos, embora sejam absurdos e injustificáveis.

Bárbara gostava de pedir. Pedira e engordava.
Por mais absurdo que pareça, encontrava-me sempre disposto a lhe satisfazer os caprichos. Em troca de tão constante dedicação, dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente. Não os retive todos na memória, preocupado em acompanhar o crescimento do seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição.[6]

Nesse trecho, além de evidente o fato de o marido sentir-se preso às vontades e pedidos da mulher, é perceptível, ainda, uma característica inerente ao texto de Murilo Rubião: a incongruência entre causa e efeito: “Pedia e engordava” (p. 29.) ou “o crescimento de seu corpo, se avolumando à medida que se ampliava sua ambição” (p. 29.).
Outro recurso empregado no texto á a reiteração, pois sempre que se lhe satisfazia um pedido, Bárbara interessava-se por outra coisa, pedia mais uma vez e o marido satisfazia-lhe a todos os seus pedidos. Além da reiteração e da incongruência entre causa e efeito, existem vários momentos em que se evidencia a hipérbole: “Às vezes relutava em aquiescer às suas exigências, vendo-a engordar incessantemente.” (p. 30.). “Definhava-lhe o corpo, enquanto lhe crescia assustadoramente o ventre.” (p. 30.).
Mas o crescimento descomunal da barriga de Bárbara era o prenúncio de um filho e após em período sem pedir nada – o que levou seu marido à angústia – ela lhe pede um oceano. E continua a engordar e a pedir.

Momentaneamente despreocupei-me da exagerada gordura de Bárbara. As minhas apreensões voltam-se agora para o seu ventre a dilatar-se de forma assustadora. A tal extremo se dilatou que, apesar da compacta massa de banha que lhe cobria o corpo, ela ficava escondida por trás de colossal barriga. Receoso de que dali saísse um gigante, imaginava como seria terrível viver ao lado de uma mulher gordíssima e um filho monstruoso, que poderia ainda herdar da mãe a obsessão de pedir coisas.
Para meu desapontamento, nasceu um ser raquítico e feio, pesando um quilo.[7]

Aqui tanto há a hipérbole (“colossal barriga” / “nasceu um ser raquítico e feio, pesando um quilo”), como há, também, efeito não proporcional à causa: nascer um ser raquítico quando a barriga da mãe era colossal.
Bárbara repele o filho após seu nascimento, apenas pelo fato de não o ter encomendado: o que constitui um paradoxo: uma mãe indiferente e insensível ao pranto e à fome do filho, negando-se lhe entregar os volumosos seios cheios de leite.
Segue-se a narrativa e Bárbara segue pedindo sempre, cada vez mais seus pedidos ganham proporções maiores. Um dia pediu um baobá. É com a satisfação deste pedido que ela deixa transparecer, embora muito à miúde, alguma demonstração de carinho pelo marido.

Feliz e saltitante, lembrando uma colegial, Bárbara passava as horas passeando sobre o grosso tronco. Nele também desenhava figuras, escrevia nomes. Encontrei o meu debaixo de um coração, o que muito me comoveu. Este foi, no entanto, o único gesto de carinho que dela recebi. Alheia à gratidão com que eu recebera a sua lembrança, assistiu ao murchar das folhas e, ao ver seco o baobá, desinteressou-se dele.[8]

Outras hipérboles são encontradas no texto, tais como o fato de passar-se anos do nascimento do menino e este continuar do mesmo tamanho. Esse fato, além de hiperbólico, é, ainda, outro exemplo da ruptura do princípio de causalidade: causa que não produz efeito. E Bárbara sempre a engordar.
Seus pedidos continuam: pede um navio e por fim, pede uma minúscula estrela.
Dessa forma, Murilo Rubião cria um texto cuja atmosfera é de representação e de crítica à mulher decaída, sobre o que escreveu Nelly Novaes Coelho:

Descendente de Eva, que induzindo o homem à desobediência, provoca a ira divina e a conseqüente condenação: perda do paraíso (= impedimento ao verdadeiro Conhecimento da vida); condenação a viver na terra, à custa de um duro trabalho, acompanhado de sofrimentos sem conta; e proibição do sexo, fora de sua finalidade básica: a procriação.[9]

A figura da mulher povoa o universo muriliano, exercendo uma influência nefasta sobre o homem. Ela nunca aparece como um ser amoroso e redentor, prevalece-lhe a face negativa. Bárbara é, assim, a representação da culpa herdada pelo homem do Antigo Testamento. O diálogo estabelecido entre o universo muriliano e o universo bíblico, dá-se através da consciência crítica do processo de desumanização a que o sistema progressista/competitivo condena o homem, e a consciência de uma condenação méis antiga, presente no Antigo Testamento, cuja voz profética determinou pára sempre o destino dos homens à expiação da Culpa.
Percebe-se, assim, que o homem do universo de Murilo Rubião está condenado a essa expiação de uma herança culposa advinda dos ancestrais da humanidade, desde Adão e Eva. A consciência culposa pode ser evidenciada em outros textos do mesmo autor como “A fila”, “Os comensais”, “Elisa”, “Aglaia”, dentre outros, nos quais os personagens, embora vivenciam experiências alógicas, deixam transparecer uma consciência culposa mediante os fatos por eles vividos, pois não há nada nem ninguém que apareça para salvá-los da fatalidade que os arrasta; tal qual o homem-da-culpa do Antigo Testamento não foi capaz de escapar da ira de Jeová, que o condenou ao desterro terrestre.

No perfil do homem-da-culpa que arraigam os três vetores que fundamentam a problemática muriliana: o interdito ao verdadeiro Conhecimento da vida; o interdito à fluição livre do sexo e o interdito ao trabalho como fonte de realização existencial. A desobediência a esses interditos foi, evidentemente, causa da Culpa original e da Queda.[10]

Todo o universo da obra de Murilo Rubião é permeado pela lembrança da maldição da Queda, o que explica as infindáveis barreiras que sempre se interpõem entre homens e mulheres que o povoam. Nos textos de Murilo Rubião não existe amor conforme os moldes românticos, ou os modelos da tradição literária, o que existe é a trágica carência-de-amor. Não apenas o amor conjugal ou carnal, mas amor pela vida , por si próprio, pelo próximo. Em Bárbara, o marido deseja sempre um afeto, uma demonstração de carinho por parte de sua esposa, e, por essa razão, se dispõe sempre a lhe satisfazer os desejos – mesmo que esses desejos pareçam-lhes inexplicáveis ou dificultosos. Faz tudo para que ela perceba o quanto ele a ama, porém, Bárbara só se interessa por seus desejos e pedidos. Indiferente ao marido, ao filho, ao mundo, à própria vida. Nessa busca incessante por suas próprias satisfações, Bárbara desconhece os valores que, tradicionalmente, são inerentes a qualquer ser humano, tornando-se, dessa maneira, entrave para a liberdade e felicidade do marido.
Apesar de esquecido pela crítica e pelo público por vinte e sete anos, e, com base na leitura ora feita do conto Bárbara, não há como negar que os contos de Murilo Rubião inauguram o gênero fantástico na literatura brasileira. Para Andemaro Taranto Goulart

... o fantástico muriliano questiona o problema da loucura, do real e da razão; denuncia a angústia do homem alienado pelas forças dominantes; dramatiza a questão do desejo e sua interdição, além de propiciar, a autocontemplação da criação meta-poética, em voltar-se da obra sobre si mesma, na expectativa de que ela se descubra enquanto projeto criador.[11]

Essa angústia e dramatização observada por Audemaro Taranto Goulart na obra do escritor mineiro, torna-se melhor percebida se o leitor não deixar de lado a leitura epigráfica proposta por Goulart, posto que todos os contos de Murilo Rubião contêm epígrafes retiradas todas elas do Antigo Testamento. Somente depois de feita a leitura epigráfica, o leitor compreenderá a relação dialética entre as epígrafes e os contos. Pois nem sempre as epígrafes mantêm uma relação direta, no campo da significação, com os conteúdos abordados nos contos. À primeira vista parecerá, ao leitor desatento, que entre conto e epígrafe não existe nenhuma coerência. Mas é justamente aí que consiste a grandeza deste procedimento muriliano: leva o leitor a pesquisar, a dialogar com outros textos, que criação literária não se faz apenas com idéias, mas com palavras, com o diálogo entre textos. Realizada essa compreensão, o leitor de Murilo Rubião experimentará a sensação de purificação à qual Aristóteles se referiu em sua “Poética”: a catarse. Nas palavras, ainda, de Audemaro:

E esse sentimento de catarse, que toma conta do leitor, é um dos aspectos que faz da obra de Murilo Rubião um dos momentos iluminados do modernismo brasileiro.”[12]

Certamente, ao leitor que se dispuser a debruçar-se em leitura do texto muriliano, fica então um breve itinerário a ser traçado para que o texto desse escritor mineiro seja verdadeiramente valorizado e fruído como deve sê-lo. Dialogando com outros textos. Percebendo que se trata de uma experimentação bem sucedida e descoberta de uma nova maneira de representação do fantástico. E, que, através desse procedimento, ora fantasioso, ora atraente por ser brutal, ora monstruoso, ora repugnante, tem-se diante de si um texto exemplar.


[1] Louis Vax, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 32.
[2] Roger Caillois, citado por T. Todorov, Op. Cit., p. 32.
[3] STALLONI, Yves. P. 124.
[4] ANDRADE, Vera Lúcia et alli. P. 1.
[5] LINS, Álvaro.
[6] RUBIÃO, Murilo. P. 29.
[7] Idem. P. 31.
[8] Idem. P. 31-32.
[9] COELHO, Nelly Novaes. P. 3.
[10] Idem. P. 3.
[11] GOULART, Audemaro taranto. P. 11.
[12] Idem. P. 12.

2 comentários: