A literatura de
entretenimento e o ensino de literatura
É lugar comum entre nós
professores de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, ou não, ouvirmos
dizer que nossos alunos (adolescentes ou pré-adolescentes) não gostam de
ler. Por outro lado, existe um livro,
cujo enredo conta a saga de um jovem bruxo, que tornou-se um dos livros mais
vendidos em vários países, inclusive aqui no Brasil. Refiro-me à narrativa de Joanne Kathleen
Rowling: Harry Potter, obra composta de seis volumes: H. P. e
a pedra filosofal; H. P. e a câmara secreta; H. P. e o prisioneiro de Azkaban;
H. P. e o cálice de fogo; H. P. e a ordem da Fênix; H. P. e o enigma do
príncipe. Totalizando os seis
volumes algo em torno de 1.100 páginas, aproximadamente.

Voltando a O senhor
dos anéis e a Harry Potter, um fato curioso a ser observado é que o
público leitor dessas narrativas compõe-se, em sua maioria, de adolescentes e
pré-adolescentes, aqueles mesmos que costumamos dizer que “não gostam de ler”,
o problema é que eles não gostam de ler os livros que os professores indicam na
classe.
Eis que surge uma
pergunta: por que esses jovens não gostam de ler?
Ora, em primeiro lugar,
os livros que são indicados em sala de aula pelos professores além de não
estarem na “moda”, são narrativas que exigem um leitor mais familiarizado com o
texto literário: são os chamados clássicos da literatura brasileira. Em segundo lugar, existe a obrigatoriedade da
leitura com prazo determinado e uma “avaliação” que cobrará do leitor um
atestado para legitimar a leitura do livro que lhe fora imposto, o que torna o
ato de ler uma obrigatoriedade, enfadonha, desinteressante. Nessas “avaliações” costuma-se cobrar dos
alunos nomes de personagens, os porquês dos acontecimentos dos fatos narrados,
deixando de lado questões mais pertinentes ao fazer literário, a investigação
do porquê de a obra ser escrita daquela forma, porque se classificam como românticas,
realistas etc. Em terceiro lugar, os
livros da “moda”, em sua maioria, tratam de narrativas fantásticas, usando a
classificação de Tzvetan Todorov (2003, pág. 31) para quem o fantástico é a
hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural. Isto é, são narrativas, nas quais o leitor é
seduzido a adentrar em mundos repletos de seres mágicos, mitológicos, onde a fantasia
reporta à imaginação, à aventura. É um
convite ao leitor para que enverede em um mundo irreal, para que fuja da
realidade a um mundo de sonho e fantasia.
Como podemos observar no conceito do filósofo e místico russo Vladimir
Soloviov (citado por Tomachévski,):
No
verdadeiro fantástico, guarda-se sempre a possibilidade exterior e formal de
uma explicação simples dos fenômenos, mas ao mesmo tempo esta explicação
completamente privada de probabilidade interna.
Todas as minúcias devem ter um caráter quotidiano, mas consideradas em
seu conjunto, devem indicar uma outra causalidade. (TOMACHÉVSKI, apud. Soloviov, 1978, p. 189)
Dessa maneira, podemos
concluir que no fantástico existe um fenômeno estranho que pode ser explicado de
duas formas distintas: por meio de causas naturais ou pelo sobrenatural. A hesitação entre essas duas possibilidades
criou o efeito fantástico.
Evidentemente, este não
é o caso de O nome da rosa, de Eco.
Nessa narrativa, o fantástico cede lugar à investigação policial onde
crimes são desvendados, bem ao gosto de Agatha Christie, Edgar Wallace ou Sir Conan
Doyle. O enredo de O nome da rosa
desenvolve-se na última década de novembro do ano de 1327, em um mosteiro da Itália
medieval. Para compô-lo, Eco utiliza-se
de um roteiro policial, ao estilo de Conan Doyle, que prende fortemente a
atenção do leitor por ser uma narrativa que se identifica com os romances
policiais série noire pelo seu caráter de humor e crueldade, malícia e
sedução erótica.
O segredo do sucesso e
da popularização do gosto por essas narrativas parece residir na forma do
enredo linear, caracterizando-se por sua trivialidade (entendendo-se como
repetição de um modelo narrativo), onde heróis / heroínas sempre lutam contra vilões,
ou seja, o bem lutando contra o mal, com a vitória do primeiro sobre o
segundo. Flávio Kothe lembra:
O
romance de aventuras, a novela de detetive, a novela policial, o “thriller” e demais
gêneros da ficção de massa parecem caracterizar-se por sua trivialidade – a
repetição e superficialidade de tipos, enredos, finais – em nível de estrutura
profunda, com uma grande variação de estruturas de superfície”. (KOTHE, 1994, pág. 13)
São, portanto,
narrativas que se lêem por deleite, por puro passatempo, sem que ninguém nos
obrigue a fazê-lo. Surge, então, uma
comunidade de leitores dessas narrativas que ora chamamos de literatura de
entretenimento, a qual se insere na cultura de massa. Assim, esses textos da chamada literatura de
entretenimento cumprem sua função por amor de si mesma, sem a preocupação com
fins práticos.
Um outro aspecto dessa
questão é o fato de que o leitor que se proponha a ler tais narrativas deve
aceitar o pacto estabelecido pelo autor e aventurar-se no mundo ficcional por
este imaginado. É necessário, pois,
compactuar com as regras do jogo da ficção, deixar-se envolver pelas mentiras
ali narradas. Mario Vargas Llosa, no
ensaio “A verdade das mentiras”, diz que:
De
fato, os romances mentem – não podem fazer outra coisa –, porém essa é só uma
parte da história. A outra é que,
mentindo, expressam uma curiosa verdade, que somente pode se expressar
escondida, disfarçada do que não é. [...] Os homens não estão contentes com o
seu destino, e quase todos – ricos ou pobres, geniais ou medíocres, célebres ou
obscuros – gostam de ter uma vida diferente da que vivem. Para aplacar – trapaceiramente – esse apetite
surgiu a ficção. Ela é escrita e lida
para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter. No embrião de todo romance ferve um
inconformismo, pulsa um desejo insatisfeito. (LLOSA, 2004, p. 16)
Então, compreendemos um
outro aspecto do fascínio que atrai os jovem leitores em questão: o deleite de
ler uma mentira que traz em si mesma uma verdade. Mentindo, o autor conta uma verdade. Pois os romances não são escritos para contar
a vida, mas para transformá-la, acrescentando-lhe algo que expresse uma
necessidade geral. Quem lê essas
mentiras, acredita nelas durante a leitura; e essas mentiras da ficção expressam
a seguinte verdade: as mentiras que somos, as que nos consolam e que nos
desagravam das nossas nostalgias e frustrações (Llosa, 2004, p. 22).
Voltemos à questão
anterior: Por que nossos alunos não gostam de ler? A esta questão,
acrescentamos outra: O que fazer para tentar solucionar esse quadro?
Em primeiro lugar, é
preciso aceitar o fato de que, nos últimos tempos a literatura mudou muito – e
há quem não reconheça, nem queira reconhecer, essa mudança. Existem pessoas que não querem compreender a
música popular como poesia; que a telenovela tenha tanto valor quanto um
romance; que o folheto de cordel tenha a mesma importância estética que a epopeia...
É preciso reconhecer que
a literatura é produzida por uma indústria tão sofisticada quanto qualquer
outra; que os livros, a partir de meados do século XX, multiplicaram-se
vertiginosamente; existe literatura para todos os gostos – tanto romances
quanto poemas. Mesmo assim, a chamada
literatura “tradicional” continua viva ao lado dos romances esotéricos, de autoajuda,
da ficção científica e do romance policial.
O que se vê, hoje, é uma literatura diferente daquela tradicional, nem
melhor nem pior, apenas diferente. Sobre
essa questão, no capítulo 1 de seu livro Literatura: leitores e leitura,
Marisa Lajolo chama a atenção para as vozes e os resmungos dos que não querem
reconhecer essa mudança, e lembra:
[...] São
resmungos de alto coturno: os donos dessas vozes dão aulas, escrevem livros
imensos, dão entrevista aos jornais. [...] Mas, geralmente, as vozes donas da
verdade usam óculos que vêem o diferente como pior e estão habituadas a terem
sempre razão. Por mais divergentes e
contraditórios que sejam seus pontos de vista sobre literatura, eles acabam recaindo
sempre no mesmo universo. [...] Além de terem cacife alto, os resmungões não
resmungam por mal, coitados. Aprenderam
só de um jeito, o deles! (LAJOLO, 2001,
p. 8-11)
Lajolo
conclui o capítulo dizendo, ainda, que esses “resmungões” assumem as posições
que assumem a partir e em nome de uma tradição cultural que vem se construindo
há séculos. Mas alerta Lajolo, que essa
tradição em que se apóiam os “resmungões” tem a civilização burguesa por
horizonte, lembrando que a civilização burguesa é branca, masculina e bem
alfabetizada.

Outro
caminho a ser percorrido nessa conquista pelo despertar do gosto pela leitura
em nossos alunos, é começar a questionar o que é literatura? Começando a romper com os limites do universo
literário, passando a ver com outros olhos textos que não fazem parte da
chamada tradição literária e reconhecer, valorizar e respeitar a leitura feita
por nossos alunos, quer sejam revistas em quadrinhos, telenovelas, pichações,
filmes, seriados televisivos, desenhos animados, romances sentimentais,
revistas de far west, e mais uma gama de narrativas que estão à
disposição no mercado.

Entre as instâncias responsáveis pelo endosso do caráter literário
de obras que aspiram ao status de literatura, a escola é
fundamental. A escola é a instituição
que há mais tempo e com maior eficiência vem cumprindo o papel de avalista e de
fiadora do que é literatura. Ela
é uma das maiores responsáveis pela sagração ou pela desqualificação de obras e
de autores. Ela desfruta de grande poder
de censura estética – exercida em nome do bom gosto – sobre a produção
literária. (LAJOLO, 2001, p.
19)
Acreditamos
que uma boa saída para que se conquiste o gosto pela leitura em nossos alunos –
leitores em formação – seria levar para a sala de aula obras da cultura de
massa, por duas razões: a primeira é que a obra de massa põe abertamente em
ação grandes modelos coletivos: nessas obras, os “temas” são muito importantes
e atraem a atenção do leitor pelo fato de reproduzirem o status quo, ou
seja, o modelo moral da sociedade; a segunda diz respeito ao fato de a obra de
massa nunca ser “inocente”, dessa maneira, ela pode ser usada como explicação
ao aluno sobre seu tempo e fazê-lo compreender uma modernidade que ainda se
encontra fora do ensino. Sobre essa
questão, convém lembrar o ensaio “Obra de massa e explicação do texto”, no qual
Roland Barthes (2004) chama a atenção para uma questão muito peculiar:
Pode-se apenas prever que, se a obra de massa algum dia se tornar
objeto de ensino (coisa sobre a qual não fazemos afirmações categóricas aqui),
será preciso pedir ao professor uma mudança de atitude (a que provavelmente
muitos já deram início). Em primeiro
lugar, evidentemente, será preciso dessacralizar a obra, não tentar
transformá-la em obra-prima clássica disfarçada; convirá sobretudo revisar
noções críticas, como a de originalidade.
Também será preciso aceitar a noção de “pertinência” estética, ou seja,
de lógica formal, interna a uma grande estrutura coletiva, nem que ela seja
muito “comercial”. (BARTHES, 2004, p. 54)
Sendo
assim, fica aqui o desafio aos professores de Português – e também aos de
Literatura: arregassem as mangas, armem-se com livros, pois o caminho é longo,
tortuoso e infindável, porém não é preciso buscar seu fim, o mais importante e
excitante é o processo, o percurso a ser percorrido. Então, boas leituras.
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