terça-feira, 12 de junho de 2012


a carcaça do verme no vaso

Existem sujeitos por toda parte, entre a luz e a sombra. (Michel Serres)



Acordou cedo e saiu.  Naquela manhã em que tudo parecia comum como sempre foi, tomou uma decisão: tinha de ser poeta.  Fez a barba e saiu.  Mesmo sendo homem, carne sem luz, criatura cega, tinha de ser poeta.  Engoliu um café preto e saiu.  Aquela decisão não o deixou dormir.  Precisava ser poeta.  Depois daquela aula em que leu Baudelaire, analisou um poema de Bilac, ouviu a leitura de Augusto dos Anjos e viu um livro de Hilda Hilst que o professor mostrou na aula.  Lavou-se, pelos e sombras, solidão e desgraça, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas.  Ai senhores, ele tinha igual a vós o fétido buraco!  E saiu.  Não tinha mais o que pensar.  Estava decidido: ia ser poeta.  E saiu decidido.  Pensando na menininha que lambia o sorvete de chocolate do amigo do pai no livro que o professor mostrou na aula e fez a patricinha do lado ficar ruborizada.  Pegou um ônibus, transitou na realidade geográfica infeliz e foi pra aula.  Hoje iam estudar Lima Barreto, pro vestibular.  Que merda!!  Porra de vestibular!!  Um cu essas leituras.  Uma leitura mecânica, dirigida.  Não!  Tinha Baudelaire e a carcaça do carneiro na mente e o verso de Augusto dos Anjos.  Depois que leu, convenceu-se de que ele tão jovem e tão adolescente era mesmo um verme e seu corpo se arrastava para a podridão e o Universo calado o renegava.  Tinha de ser poeta.  A cabeça fervilhava mil ideias a mil a toda hora sempre e sempre querendo romper como uma espinha juvenil manchando o rosto ou como porra quente entrededos e certificou-se se sabia ler.  Olhou tudo ao seu redor e procurou uma musa talvez, mas só carros e asfalto e buzinas e popozudas e bombados e óculos escuros e boticários e avon e aquele forró insistente do motorista.  E sua própria boca que o maldizia.  Assim não conseguiria escrever uma métrica sequer.  Se deu conta de que não havia mais o Olimpo nem Afrodite, nem Eros, nem Teseu, nem Andrômeda.  Parou triste.  Mas tinha de ser poeta.  Seguiu.  Na escola estava tudo tão igual: todos com a mesma roupa e lembrou de Mao.  E daquele rock que pedia teacher leave your kids alone.  Não se sentia mais um tijolo no muro.  Fruto injustificável dentre os frutos, montão de estercorária argila preta.  Não.  E não queria isso porque sabia que não era isso.  E isso não levava ninguém a pasárgada?  Encontrou os amigos e disse: Tenho de ser poeta.  Riram e riram e gargalharam e gargalharam e disseram que ia morrer de fome e que ia ficar na margem sem espaço no shopping.  Que seria excrescência de terra singular.  A ideia de ficar fora dos amigos o deixou melancólico.  E pensou em Diadorim e seu amor.  Foi quando tocou o celular e ele acordou e sem saber caiu o véu de Ísis.  Revelou-se a ele o sentido mesmo do verso de Augusto dos Anjos e percebeu de qual carcaça falou Baudelaire e chorou uma lágrima comprida e solitária.  Foi quando olhou em volta e só viu feras e sentiu-se mais convictamente verme.  Nunca estrela se supunha.  Agora se sabia verme e não tinha nenhuma luz para se cegar.  Tinha de ser poeta.  Tinha de revelar ao mundo a certeza de que era dono.  De como percebeu que o universo era como uma pedra de igual valor.  Seu amor a se esparramar na poltrona diante do capítulo de Machado.  Capitu.  O mal absoluto.  Infidelidades egocêntricas.  A dor de ser o que se é e mesmo assim ter de chamar por Mary e não ser ouvido.  Se ao menos lhe fosse dado o direito de olhar na cara dos homens...  Seria possível lembrar do peixe tatuado no ombro daquele amigo!  Mas tinha de continuar com seu intuito: tinha de ser poeta.  Sentou-se só a um canto e olhou todos os outros.  Pensou.  Parou.  Olhou.  Teria ele um só direito: o de chorar?  Levantou-se e saiu.  Tinha de ser poeta.  Mas como seria poeta e escreveria um poema.  Se ele se sentia agora seu próprio verso.  Ou palavra espaçada em branco de papel num jogo de interdito entre o sentido e o verbo.  Era ele mesmo a palavra pronunciada.  Era ele mesmo a palavra escrita, para sempre para sempre presa a um papel.  Sancho Pança de si mesmo.  Pinto Calçudo.  Comeu um hot dog com coca-cola e foi ao seu quarto.  A porta bateu atrás de si.  Foi ouvir sua banda favorita.  Pensou.  Já não havia mais versos pra se escrever?  Olhou em volta e viu o mundo de cima.  E não podia entender essa vida de querer ser o mesmo que outros.  Levantou-se e foi à janela.  E aquela menina em frente à tabacaria que já não existia a comer chocolates com mais metafísica que tudo.  E pensou em Dorinha, meu amor.  E se ele fosse também bastante puro...  mas não o era.  Ninguém era.  Não era mais ele mesmo.  Não seria mais apenas um, tinha um verso, sabia que tinha.  Precisava contribuir com ele.  Pois já sabia da lama que o esperava.  Já sabia que a mão que afaga é a mesma que apedreja e que o beijo é a véspera do escarro.  A carcaça do verme no vaso fez com que percebesse que ele mesmo era o infante e a princesa que dormia.  Retirou a grinalda de hera que lhe cobria o rosto e beijou a si mesmo.  Precisava ser poeta.  Escreveu um hai-kai.  E foi dormir.
Florêncio  Caldas

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