a carcaça do verme no vaso
Existem sujeitos por toda
parte, entre a luz e a sombra. (Michel
Serres)
Acordou cedo e saiu. Naquela manhã em que tudo parecia comum como
sempre foi, tomou uma decisão: tinha de ser poeta. Fez a barba e saiu. Mesmo sendo homem, carne sem luz, criatura
cega, tinha de ser poeta. Engoliu um
café preto e saiu. Aquela decisão não o
deixou dormir. Precisava ser poeta. Depois daquela aula em que leu Baudelaire,
analisou um poema de Bilac, ouviu a leitura de Augusto dos Anjos e viu um livro
de Hilda Hilst que o professor mostrou na aula.
Lavou-se, pelos e sombras, solidão e desgraça, sovacos, coxas, o escuro
buraco, sexo, bolotas. Ai senhores, ele
tinha igual a vós o fétido buraco! E
saiu. Não tinha mais o que pensar. Estava decidido: ia ser poeta. E saiu decidido. Pensando na menininha que lambia o sorvete de
chocolate do amigo do pai no livro que o professor mostrou na aula e fez a
patricinha do lado ficar ruborizada.
Pegou um ônibus, transitou na realidade geográfica infeliz e foi pra
aula. Hoje iam estudar Lima Barreto, pro
vestibular. Que merda!! Porra de vestibular!! Um cu essas leituras. Uma leitura mecânica, dirigida. Não!
Tinha Baudelaire e a carcaça do carneiro na mente e o verso de Augusto
dos Anjos. Depois que leu, convenceu-se
de que ele tão jovem e tão adolescente era mesmo um verme e seu corpo se
arrastava para a podridão e o Universo calado o renegava. Tinha de ser poeta. A cabeça fervilhava mil ideias a mil a toda
hora sempre e sempre querendo romper como uma espinha juvenil manchando o rosto
ou como porra quente entrededos e certificou-se se sabia ler. Olhou tudo ao seu redor e procurou uma musa
talvez, mas só carros e asfalto e buzinas e popozudas e bombados e óculos
escuros e boticários e avon e aquele forró insistente do motorista. E sua própria boca que o maldizia. Assim não conseguiria escrever uma métrica
sequer. Se deu conta de que não havia
mais o Olimpo nem Afrodite, nem Eros, nem Teseu, nem Andrômeda. Parou triste.
Mas tinha de ser poeta.
Seguiu. Na escola estava tudo tão
igual: todos com a mesma roupa e lembrou de Mao. E
daquele rock que pedia teacher leave your kids alone. Não se sentia mais um tijolo no muro. Fruto injustificável dentre os frutos, montão
de estercorária argila preta. Não. E não queria isso porque sabia que não era isso. E isso não levava ninguém a pasárgada? Encontrou os amigos e disse: Tenho de ser
poeta. Riram e riram e gargalharam e
gargalharam e disseram que ia morrer de fome e que ia ficar na margem sem
espaço no shopping. Que seria
excrescência de terra singular. A ideia
de ficar fora dos amigos o deixou melancólico.
E pensou em Diadorim e seu amor.
Foi quando tocou o celular e ele acordou e sem saber caiu o véu de
Ísis. Revelou-se a ele o sentido mesmo
do verso de Augusto dos Anjos e percebeu de qual carcaça falou Baudelaire e
chorou uma lágrima comprida e solitária.
Foi quando olhou em volta e só viu feras e sentiu-se mais convictamente
verme. Nunca estrela se supunha. Agora se sabia verme e não tinha nenhuma luz
para se cegar. Tinha de ser poeta. Tinha de revelar ao mundo a certeza de que
era dono. De como percebeu que o universo
era como uma pedra de igual valor. Seu
amor a se esparramar na poltrona diante do capítulo de Machado. Capitu.
O mal absoluto. Infidelidades
egocêntricas. A dor de ser o que se é e
mesmo assim ter de chamar por Mary e não ser ouvido. Se ao menos lhe fosse dado o direito de olhar
na cara dos homens... Seria possível
lembrar do peixe tatuado no ombro daquele amigo! Mas tinha de continuar com seu intuito: tinha
de ser poeta. Sentou-se só a um canto e
olhou todos os outros. Pensou. Parou.
Olhou. Teria ele um só direito: o
de chorar? Levantou-se e saiu. Tinha de ser poeta. Mas como seria poeta e escreveria um poema. Se ele se sentia agora seu próprio
verso. Ou palavra espaçada em branco de
papel num jogo de interdito entre o sentido e o verbo. Era ele mesmo a palavra pronunciada. Era ele mesmo a palavra escrita, para sempre
para sempre presa a um papel. Sancho Pança
de si mesmo. Pinto Calçudo. Comeu um hot dog com coca-cola e foi ao seu
quarto. A porta bateu atrás de si. Foi ouvir sua banda favorita. Pensou.
Já não havia mais versos pra se escrever? Olhou em volta e viu o mundo de cima. E não podia entender essa vida de querer ser
o mesmo que outros. Levantou-se e foi à
janela. E aquela menina em frente à
tabacaria que já não existia a comer chocolates com mais metafísica que
tudo. E pensou em Dorinha, meu
amor. E se ele fosse também bastante
puro... mas não o era. Ninguém era.
Não era mais ele mesmo. Não seria
mais apenas um, tinha um verso, sabia que tinha. Precisava contribuir com ele. Pois já sabia da lama que o esperava. Já sabia que a mão que afaga é a mesma que
apedreja e que o beijo é a véspera do escarro.
A carcaça do verme no vaso fez com que percebesse que ele mesmo era o
infante e a princesa que dormia. Retirou
a grinalda de hera que lhe cobria o rosto e beijou a si mesmo. Precisava ser poeta. Escreveu um hai-kai. E foi dormir.
Florêncio Caldas
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