Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...
Florbela
Espanca
Alguns poemas de Augusto dos Anjos
IDEALISMO
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
– Alavanca desviada do seu fulcro –
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
HOMO
INFIMUS
Realidade
geográfica infeliz,
O
Universo calado te renega
E a
tua própria boca te maldiz!
O
nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te.
Hebdômadas hostis
Passam...
Teu coração se desagrega,
Sangram-te
os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto
injustificável dentre os frutos,
Montão
de estercorária argila preta,
Excrescência
de terra singular.
Deixa
a tua alegria aos seres brutos,
Porque,
na superfície do planeta,
Tu
só tens um direito: – o de chorar!
O
MORCEGO
Meia-noite.
Ao meu quarto me recolho.
Meu
Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na
bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me
a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou
mandar levantar outra parede...”
–
Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E
olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente
sobre a minha rede!
Pego
de um pau. Esforços faço. Chego
A
tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que
ventre produziu tão feio parto?!
A
Consciência Humana é este morcego!
Por
mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente
em nosso quarto!
A IDÉIA
De onde ela
vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz
que sobre as nebulosas
Cai de
incógnitas criptas misteriosas
Como as
estalactites duma gruta!
Vem da
psicogenética e alta luta
Do feixe de
moléculas nervosas,
Que, em
desintegrações maravilhosas,
Delibera, e
depois, quer e executa!
Vem do
encéfalo absconso que a constringe,
Chega em
seguida às cordas da laringe,
Tísica,
tênue, mínima, raquítica...
Quebra a
força centrípeta que a amarra,
Mas, de
repente, e quase morta, esbarra
No molambo da
língua paralítica!
CANTO ÍNTIMO
Meu amor, em
sonhos erra,
Muito longe,
altivo e ufano
Do barulho do
oceano
E do gemido
da terra!
O Sol está
moribundo.
Um grande
recolhimento
Preside neste
momento
Todas as
forças do Mundo.
De lá, dos
grandes espaços,
Onde há
sonhos inefáveis
Vejo os
vermes miseráveis
Que hão de
comer os meus braços.
Ah! Se me
ouvisses falando!
(E eu sei que
ás dores resistes)
Dir-te-ia
coisas tão tristes
Que acabarias
chorando.
Que mal o
amor me tem feito!
Duvidas?!
Pois, se duvidas,
Vem cá, olha
estas feridas,
Que o amor
abriu no meu peito.
Passo longos
dias, a esmo.
Não me queixo
mais da sorte
Nem tenho
medo da Morte
Que eu tenho
a Morte em mim mesmo!
"Meu
amor, em sonhos, erra,
Muito longe,
altivo e ufano
Do barulho do
oceano
E do gemido
da terra!"
A OBSESSÃO DO SANGUE
Acordou,
vendo sangue... — Horrível! O osso
Frontal
em fogo... Ia
talvez morrer,
Disse.
olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah!
certamente não podia ser!
Levantou-se.
E eis que viu, antes do almoço,
Na
mão dos açougueiros, a escorrer
Fita
rubra de sangue muito grosso,
A
carne que ele havia de comer!
No
inferno da visão alucinada,
Viu
montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu
vísceras vermelhas pelo chão ...
E
amou, com um berro bárbaro de gozo,
O
monocromatismo monstruoso
Daquela
universal vermelhidão!
O
DEUS-VERME
Factor
universal do transformismo.
Filho da
teleológica matéria,
Verme — é o
seu nome obscuro de batismo.
Jamais
emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária
ocupação funérea,
E vive em
contubérnio com a bactéria,
Livre das
roupas do antropomorfismo.
Almoça a
podridão das drupas agras,
Janta
hidrópicos, rói vísceras magras
E dos
defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele
é que a carne podre fica,
E no
inventário da matéria rica
Cabe aos seus
filhos a maior porção!
* * *
Ave Maria
Meu filho! termina o dia...
A primeira estrela
brilha...
Procura a tua cartilha,
E reza a Ave Maria!
O gado volta aos currais...
O sino canta na igreja...
Pede a Deus que te proteja
E que dê vida a teus pais!
Ave Maria!... Ajoelhado,
Pede a Deus que, generoso,
Te faça justo e bondoso,
Filho bom, e homem honrado;
Que teus pais conserve aqui
Para que possas, um dia,
Pagar-lhes em alegria
O que sofreram por ti.
Reza, e procura o teu
leito,
Para adormecer contente;
Dormirás tranquilamente,
Se disseres satisfeito:
“Hoje, pratiquei o bem:
Não tive um dia vazio,
Trabalhei, não fui vadio,
E não fiz mal a ninguém.”
(Olavo Bilac, Poesias
Infantis.
Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1929.)
Visita à casa paterna
(Guimarães Junior)
Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.
Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
O fantasma, talvez, do amor materno,
Tomou-me as mãos – olhou-me grave e terno,
E, passo a passo, caminhou comigo.
Era esta a sala... (Oh! se me lembro! E quanto!)
Em que, da luz noturna à claridade,
Minhas irmãs e minha Mãe... O pranto
Jorrou-me em ondas... Resistir quem há de?
– Uma ilusão gemia em cada canto,
Chorava em cada canto uma saudade...
* * *
Meus oito anos
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os tempos não trazem
mais!
Que amor, que sonhos, que
flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
Que auroras, que sol, que
vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
– Pés descalços, braços nus
–
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava à Ave-Maria,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
*
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem
mais!
– Que amor, que sonhos, que
flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
(Casimiro de Abreu)
Todas as Cartas de Amor são Ridículas
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.As cartas de amor, se há amor,Têm de serRidículas.Mas, afinal,Só as criaturas que nunca escreveramCartas de amorÉ que sãoRidículas.Quem me dera no tempo em que escreviaSem dar por issoCartas de amorRidículas.A verdade é que hojeAs minhas memóriasDessas cartas de amorÉ que sãoRidículas.(Todas as palavras esdrúxulas,Como os sentimentos esdrúxulos,São naturalmenteRidículas.)
[1] Álvaro
de Campos é um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.
A Pátria
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...
Quem com seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!
(Poesias
Infantis.
Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1929.)
O Vinho de Hebe
Raimundo Correia
Quando do Olimpo nos
festins surgia
Hebe risonha, os deuses
majestosos
Os copos estendiam-lhe,
ruidosos,
E ela, passando, os copos
lhes enchia...
A Mocidade, assim, na
rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga
de gozos,
Passa por nós, e nós
também, sequiosos,
Nossa taça
estendemos-lhe, vazia...
E o vinho do prazer em
nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos
e passa...
Passa, e não torna atrás
o seu caminho.
Nós chamamo-la em vão; em
nossos lábios
Restam apenas tímidos
ressábios,
Como recordações daquele
vinho.
V
A flor e a fonte
Vicente de Carvalho
“Deixa-me, fonte!” Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
“Deixa-me, deixa-me, fonte!”
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
Não me leves para o mar”.
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
“Ai, balanços do meu galho,
Balanços do berço meu;
Ai, claras gotas de orvalho
Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas,
Cantigas do rouxinol;
Ai, festa das madrugadas,
Doçuras do pôr-do-sol;
Carícia das brisas leves
Que abrem rasgões de luar...
Fonte, fonte, não me leves,
Não me leves para o mar!...
*
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
(Poemas e canções)
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