A performance narrativa em A obscena senhora D
Narrativa entrecortada. Cenas que se
justapõem, ora se entrecruzam enfileiradas tal película cinematográfica. Fluxo de imagens que se rarefazem à medida
que o leitor deixa-se envolver com as perguntas e delírios da Senhora
Derrelição – a Senhora D. Hilda
Hilst nos apresenta uma narrativa cuja compreensão de leitura torna-se possível
se o leitor tiver em mente que está diante de um texto literário que extrapola
seu conhecimento sobre o que é literário. Melhor dizendo, o texto hilstiano transcende
a narratividade enquanto modelo de narrativa literária. O texto de Hilda Hilst, a exemplo de A
obscena senhora D, mesmo que pareça ao leitor um fluxo quase ininterrupto
de cenas e fragmentos narrativos, não pode ser visto apenas como uma
inesgotável confluência de ideias vindas diretamente do inconsciente de sua
autora ao papel e deste ao leitor. O que
se observa é um processo criativo no qual predomina uma linguagem aprimorada,
um texto complexo em estruturação formal[1].
O trabalho com o aspecto formal do texto em A
obscena senhora D confere-lhe uma peculiaridade que podemos afirmar
performática. O texto de Hilda Hilst
traz em si mesmo um quê de teatralização, de performance. Ao lê-lo, tem-se a impressão de se estar em
um ambiente onde se assiste a um espetáculo teatral. No espaço vazio, incide um facho de luz sob o
qual um(a) performer desenvolve a cena.
Embora, no nosso caso de simples leitores solitários diante da obra, não
haja o elemento mediador comum ao teatro.
Esse elemento mediador, também chamado encenador, que hoje
ultrapassou a função de organizar cenicamente o espetáculo, assumiu a posição
de leitor privilegiado, tornando-se uma espécie de co-autor (Hildebrando,
2003). Nesse tocante, o texto não-dramático
diferencia-se do texto de teatro por a “mensagem” se fazer direta, cabendo ao
leitor a construção do cenário, por corporificar a persona[2]
e por dar-lhe corpo e voz para que viva no espaço da cena, ou em um outro
espaço que não seja o palco nem a plateia, segundo Antonio Hildebrando:
...preciso dominar o mecanismo que me faça sair da frente
do livro para estar, virtualmente, na posição de espectador que vê no palco a
letra transformada em voz. O mesmo processo, elevado à máxima potência,
mostra-se uma ferramenta necessária para a transformação cênica do texto
não-dramático. (HILDEBRANDO, 2003, p. 25).
O espaço em que podemos situar, conforme o próprio
texto, a imagem de Hillé – personagem de A obscena senhora D – é o vão
da escada, a qual remete o leitor, através de sua imaginação, a um lugar físico
– o vão de uma escada que está, evidentemente, no interior de uma casa –;
todavia, ao leitor, cabe situar-se em um espaço psicológico (o que lhe dará
maiores possibilidades de criação, de fantasia, de imaginação). Cohen (2002), ao se referir à experimentação
no teatro, denomina esses espaços de topos: lugar onde se dão as
relações entre os dois pólos definidos da expressão cênica (atuantes – público). O “texto” – que, no nosso caso, torna-se mais
intrigante por tratar-se de obra literária em prosa – será o elo dessas
relações. Ele se tornará o mediador da
cena, por onde acontecerão as transformações características da arte (passagem
da vida para a representação, do real para o imaginário e o simbólico, do
inconsciente para o consciente etc.), embora fique claro ao leitor que o topos
da cena com todos os seus elementos se constituem como tal. Sendo a literatura a arte por excelência
imaginária, principalmente no que diz respeito à relação do objeto imaginado,
ao leitor-receptor da narrativa de Hillé compete a liberdade para situar a cena
em qualquer espaço, seja uma praça, um edifício-teatro etc. O que importa é, segundo Paul Zumthor:
A condição necessária à emergência de uma teatralidade
performancial é a identificação, pelo espectador-ouvinte, de um outro espaço; a
percepção de uma alteridade espacial marcando o texto. Isto implica alguma
ruptura com o “real” ambiente, uma fissura pela qual, justamente, se introduz
essa alteridade. (ZUMTHOR, 2000, p. 49)
O espaço escolhido por Hillé é o vão da escada, porém
existe, ainda, a janela que, vez por outra, é aberta e a senhora D se mostra,
ora com máscara ora sem máscara, entretanto fazendo caretas. Além disso, há espaços entrelaçados oriundos
de seus delírios. Ou, ainda, os espaços
reais de Hilda Hilst como a Casa do Sol e o hospital (o leito de morte de seu
pai), que se confundem com o espaço da cena da morte do pai de Hillé, ao final
do livro.
O jogo de espaços presentes em A
obscena senhora D contribui para a reconstrução da realidade por meio da
livre-associação, num ato de collage[3],
que permite o processo de “reconstrução” do mundo, no qual se justapõem imagens
inusitadas. Para Cohen:
O artista, recriando imagens e objetos, continua
sendo aquele ser que não se conforma com a realidade. Nunca a toma como definitiva,
visa, através de seu processo alquímico de transformação, chegar a uma outra realidade
– uma realidade que não pertence ao cotidiano. Essa busca é uma busca ascética
talvez, a do encontro do artista, criador, com o primeiro criador. (COHEN,
2002, p. 61)
Hilda atribui ao leitor, através de seu texto, esse
“poder” de reconstrução do mundo, da realidade – que é próprio do artista –
conferindo ao texto o poder de funcionar como uma chave para uma
“decodificação mágica da realidade”, constituindo-se, segundo o pensamento
esotérico, num dos quatro caminhos para a verdade ao lado da religião, da
filosofia e da ciência. (COHEN, 2002, p. 63.).
Assim é o texto de Hilda Hilst: intrigante e
verdadeiro porque revela a universalidade da busca da verdade, dos medos, do
grotesco: paroxismos da humanidade revelados por essa mulher de sessenta anos
(Hillé) que perdeu o marido (Ehud), mas o traz na memória delirante. Para que isso se concretize em texto, Hilda
recorre à “temporalidade”, que é característica na performance. Para o leitor de A obscena senhora D,
o que fica é uma incapacidade de contar o que leu, pois, ao final da leitura do
livro, o que vão estar em sua mente são recortes, recordações, fragmentos de
uma narrativa estruturada por collage.
Essa estruturação narrativa traduz-se, ainda, na atemporalidade,
ou seja, o texto oscila no Cronos.
Aqui não há cronologia, conforme estamos habituados a encontrar em narrativas
convencionais (começo, meio e fim), e, ao mesmo tempo, tudo parece acontecer em
um “aqui-agora”: só existe o instante-já de Hillé no vão da escada. Tudo o mais – imagem, sons, movimentos etc. –
decorre da relação interativa leitor/texto, corroborando a tese de que A
obscena senhora D seja uma narrativa que traz, através de seu processo de
ruptura com a tradição literária, elementos próprios da arte de performance:
elaboração, trabalho com a forma e a necessidade de um público. Aqui, metaforicamente, o público personifica-se
por meio da capacidade imaginativa do leitor, pois, durante a leitura do texto,
sente-se uma energia[4] que
arrebata o leitor para dentro do universo da senhora D. Tal energia e arrebatamento podem ser
percebidos ao se ler o seguinte trecho:
E agora vejamos
as frases corretas para quando eu
abrir a janela à
sociedade da vila:
o podre do cu de
vocês
vossas
inimagináveis pestilências
bocas fétidas de
escarro e estupidez
gordas bundas
esperando a vez. De quê? De cagar
nas panelas
sovacos de
excremento
buraco de verme
no oco dos dentes
o pau do porco
a buceta da vaca
a do teu filho
cutucando o ranho
as putas cadelas
imundos vadios
mijando no muro
o pó o pinto do
socó o esterco o medo, olha a cançãozinha dela, olha o rabo da víbora, olha a
morte comendo o zóio dela, olha o sem sorte, olha o esqueleto lambendo o dedo
o sapo engolindo
o dado
o dado no cu do
lago, olha, lá no fundo
olha o abismo e
vê
eu vejo o homem.
[...][5]
Evidentemente, tudo o que fora dito até então a
respeito do caráter performático da obra em estudo, de Hilda Hilst, apenas terá
significação, dependendo da maneira pela qual o texto for lido. Encontramo-nos aqui com a “estética da recepção”,
que por si só constitui corpus suficiente para um estudo à parte. A esse respeito, Zumthor considera uma das
marcas do discurso literário o forte confronto que ele instaura entre
recepção e performance (2000, p. 60.).
Citando Wolfgang Iser, um dos autores alemães mais representativos da
“estética da recepção”, este parte da ideia de que o estatuto estético do texto
literário depende da maneira pela qual é lido.
A leitura se define como absorção e criação, processo que constitui a
obra na consciência do leitor. O
encontro do leitor com a obra, em nosso caso o texto hilstiano, opera-se em
âmbito infinitamente pessoal. A esse
respeito ainda acrescenta Zumthor:
O
texto vibra; o leitor o estabiliza, de corpo e alma. Não há algo que a
linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados; e as
lacunas e os brancos que aí necessariamente subsistem constituem um espaço de
liberdade: ilusório pelo fato de que só pode ser ocupado por um instante, por
mim, por ti, leitores nômades por vocação Também assim, a ilusão é
própria da arte. A fixação, o preenchimento, o gozo da liberdade se produzem na
nudez de um face-a-face. Em presença desse texto, no qual o sujeito está
ali, mesmo quando indiscernível: nele ressoa uma palavra pronunciada,
imprecisa, obscurecida talvez pela dúvida que carrega em si, nós, perturbados
procuramos lhe encontrar um sentido. Mas esse sentido só terá uma existência
transitória, ficcional. (ZUMTHOR, 2000, p. 63)
O jogo entre cena, tempo e recepção (tão
característico da linguagem performática) faz-se uma constante ao longo da
narrativa de A obscena senhora D. Obra composta com grande economia de recursos,
cujo texto encena uma mulher de sessenta anos de idade que opta por viver num
vão de escada, em busca do sentido das coisas, onde revive a perplexidade do
marido (Ehud) que não compreende suas recusas do bom-senso, do sexo, da vida
simples.
Referências
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: Hilda Hilst nº 8. São
Paulo: Instituto Moreira Sales, outubro de 1999.
COHEN
Renato. Performance como linguagem. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
(Debates)
HILST,
Hilda. A obscena senhora D. Org. Alcir Pécora. São Paulo: Globo, 2001.
O
CORPO EM
PERFORMANCE. Orgs. Antonio Hildebrando, Lyslei Nascimento,
Sara Rojo. Belo Horizonte: NELAP/FALE/UFMG, 2003.
SUPLEMENTO
LITERÁRIO MINAS GERAIS. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura de
Minas Gerais, abril de 2001, nº 70.
ZUMTHOR,
Paul. Performance, recepção, leitura. trads. Jerusa Pires Ferreira,
Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.
[1] O processo criativo hilstiano registra um
trabalho de aprimoramento da linguagem, o que garante a criação de textos
extremamente ricos devido à complexidade das estruturas temática, formal e
rítmica criadas pela autora de Alcoolicas. Os manuscritos de Hilda Hilst
são um convite ao deslumbramento. Para a autora de Estar sendo. Ter sido,
“há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso
fim e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira”. Da mesma forma,
seus manuscritos podem ser trancados em cofres de nossa memória, pois
certamente são preciosos para o aprendizado de processo da criação literária de
grandes textos. E, portanto, passíveis de serem sonhados até o nosso fim! (GRANADO,
2001. p. 24.).
[2] Na
performance geralmente se trabalha com persona e não com personagens.
A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o
velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte etc.). A personagem é mais referencial.
Uma persona é uma galeria de personagens (por exemplo, velho chamado x
com característica y). ( COHEN, 2002, p. 107.).
[3] A
utilização da collage, na performance, reforça a busca da
utilização de uma linguagem gerativa ao invés de uma linguagem
normativa: a linguagem normativa está associada à gramática discursiva, à
fala encadeada e hierarquizada (sujeito, verbo, objeto, orações coordenadas,
orações subordinadas etc.). Isso tanto ao nível do verbal quanto ao nível de
imagético. Na medida em que ocorre a ruptura desse discurso, através da collage,
que trabalha com o fragmento, entra-se num outro discurso, que tende a ser
gerativo (no sentido da livre-associação). (COHEN, 2002. p. 64.).
[4]
Essa energia diz respeito à capacidade de mobilização do público para
estabelecer um fluxo de contacto com o artista: a energia vai se dar tanto a
nível de emissão, com o artista enviando uma mensagem sígnica – e quanto mais
energizado, melhor ele vai “passar” isto – como a nível de recepção, que vem a
ser a habilidade do artista de sentir o público, o espaço e as oscilações
dinâmicas dos mesmos. (COHEN, 2002, p. 105)
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